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quinta-feira, 4 de abril de 2013

A vidraça



Já tinha ouvido falar que não existe nada tão ruim que não possa ficar pior, que desgraça pouca é bobagem e que se existe a possibilidade de algo dar errado, dará e da pior maneira possível. Aliás, o primeiro texto desta coluna falava justamente sobre essa máxima de Edward Murphy.
No dia em que me mudei para o apartamento onde moro, percebi que uma vidraça da janela da sala estava trincada. Apontei essa informação na vistoria e solicitei a troca, mas ouvi do corretor que não se fazia necessário e que quando quebrasse eu poderia solicitar o pedido novamente.
Fiquei por quase dois anos com a vidraça trincada. Em dias de chuva forte até sentia um frio na espinha com o barulho provocado pelo vento que chacoalhava o vidro e sempre pensava: de hoje não passa.
Mas como disse anteriormente, se é pra dar errado que dê no dia em que as coisas já estão todas fora do lugar. E foi assim, no dia em que tive a minha primeira (e espero última) crise de labirintite que a vidraça quebrou.
Diante da impossibilidade de andar em linha reta, pensar na troca da vidraça foi algo que realmente passou longe de meus planos durante os dez dias em que fiquei acamada. Mas de volta a rotina, tratei de correr atrás do reparo e qual não foi minha surpresa quando descobri que seria muito mais difícil trocar essa vidraça do que subir com um sofá nas costas por doze andares de escada.
Fiz contato com seis vidraçarias, apenas uma dispôs-se a encaminhar um funcionário para verificar se o serviço poderia ser feito, as demais negaram inclusive a visita, logo de cara. Tantas negativas deram-se pelo fato do vidro estar na janela do 12° andar de um prédio que não tem sacada.
Uma das vendedoras me disse que em prédios antigos é mais difícil realizar o serviço, pelo fato do vidro ser colocado com massa e ter que ser trocado de fora para dentro. Ela ainda disse que entendia minha dificuldade, mas devia o empecilho da visita ao risco de queda.
Fiquei pensando depois das ligações que a dificuldade de hoje, deu-se pelo cuidado do passado. Antigamente as coisas eram feitas para durar (inclusive as não materiais). Não se pensava nas substituições e reparos. Diferente de hoje que a maioria das relações são superficiais e os móveis vêm com etiqueta de garantia e termo de validade, cogitar a troca de um vidro colocado no 12° andar em uma estrutura de ferro não se fazia necessário.
O fato é que a vidraça ainda continuava quebrada e ninguém queria se arriscar a fazer o serviço. O jeito foi agir por conta própria. Se desejar uma coisa bem feita, faça você mesmo. Certo? Correto, mas apesar de adorar desafios, não foi dessa vez que me pendurei no alto do 12° andar. Tratei de usar meu poder de argumentação e exigir uma ação da imobiliária para que tudo fosse resolvido, pois já tinha passado um apuro com uma chuva de vento que adorou invadir minha sala pela fresta quebrada da vidraça.
Consegui através da imobiliária, que pela primeira vez em dois anos agiu de forma rápida, um senhor, perto dos setenta anos que gostava de brincar de homem aranha e não se importou em ficar pendurado, com parte do corpo dentro e parte fora do prédio para realizar a troca.
O senhor olhou o vidro com cuidado e foi cortando pedaço por pedaço, até retirá-lo por completo. Depois, mediu o vidro que havia trazido, fez alguns recortes, passou a massa em volta de toda a moldura e... Bem, quando ele colocou a ponta do vidro na janela, presenciei uma cena de desenho animado. O vidro trincou-se inteirinho.
Muito sem graça, o senhorzinho virou-se pra mim e disse: Eu troquei uns vinte vidros semana passada e não aconteceu isso, a senhora me desculpe, mas vou ter que buscar outro.
Enquanto o acompanhava até a porta me senti culpada por não tê-lo alertado de que seria estranho se o vidro não trincasse, visto que as coisas comigo sempre acontecem no nível hard de dificuldade, mas achei melhor evitar outras explicações e quiçá a cobrança pelo vidro trincado devido a minha suposta “falta de sorte”.
Depois de cinquenta minutos ele voltou com um vidro mais grosso e garantindo que aquele ali era o melhor, seria trinta reais mais caro, mas não ia quebrar nunca mais. Olhei bem para os seus quase setenta anos e acreditei. Afinal antigamente as coisas eram feitas para durar e as pessoas costumavam ter mais palavra do que hoje em dia.
Finalmente o vento deixava de entrar sem ser convidado na minha sala. Agora posso olhar a vista em dias de frio sem cicatrizes, enquanto penso no que dentro de mim também deve ser feito para durar, como as coisas de antigamente e aquilo que devo colocar para fora, junto com os cacos da antiga vidraça...

Foto de: Taline Libanio.

Um comentário:

Taline Libanio disse...

Texto publicado no Caderno Dois do Jornal Democrata de São José do Rio Pardo/SP, no dia 09/03/13.
Aguardo comentários!