Vote aqui! :)

sábado, 28 de março de 2009

Panela de pressão que cutuca o coração



Era tarde da noite e ela ali na janela, olhava ao redor e nada de encontrar o ponto de partida daquele barulho. Um chiado constante e repetitivo que a inquietava há dias.
Saiu no quintal, olhou para o céu escuro, observou as estrelas que lá pipocavam, tantas que quase o pintavam de branco. Sentou-se em um tronco encostado na porta e imaginou, criou histórias e personagens, criou coisas e mundos diferentes onde aquele barulho poderia servir.
Imaginou um trem em alta velocidade, um garoto brincando com um chocalho, pedras raspando no chão fofo, mas nada se aproximava do chiado. Olhou fixamente para as casas vizinhas, podia ver a luz dos lampiões e sombras em seus interiores, mas não encontrou nada que poderia representar aquele som.
O ar frio começou a incomodar e ela retornou para casa, foi até a cozinha, colocou um bule no fogão a lenha e olhou hipnotizada para as brasas em chama. Transportou-se para um mundo imaginário, passou por guerreiros e princesas, andou em charretes e ouviu sinos badalarem, viu reinos incendiados e despertou com o chiado novamente: chiii,chiii,chiii,chiii.
Mas que diabos! Pensou irritada. Chegou a imaginar que poderia ser uma cigarra prestes a trocar de “casca”, ou grilos em festa, mas nada se comparava ao barulho que já lhe deixava sem dormir. Todos os dias, no mesmo horário, lá se instalava ele, iniciava tímido e logo em seguida disparava alto e constante: chiii,chiii,chiii, permanecia assim por cerca de um quarto da hora e depois sumia devagar.
Na ânsia de ouvi-lo novamente, ela ficava ali, atenta, de olhos e ouvidos bem abertos quase a noite inteira na espera de seu recomeçar, mas era em vão. O som só se ouvia uma vez, no final da tarde, quase à noitinha, quando se preparava para, assim como as galinhas, repousar.
Depois de duas semanas nessa inquietude, enquanto fazia um café bem forte para segurar-lhe o sono, não ouviu mais o chiado. Saiu no quintal, olhou ao redor, limpou os ouvidos, arregalou os olhos e nada, nem grilos, nem cigarras, nem trens, nem sinos, nem charretes, nem chocalhos, só o silêncio. Denso, tenso e triste. Preocupo-se e quis chorar.
Ajoelhou aos pés da santa no altar improvisado e murmurava o terço enquanto pedia a volta do chiado: Minha santa mãezinha, não me deixe aqui tão sozinha, traz de volta aquele barulhinho minha santinha! Repetiu a oração até adormecer, acordou exausta e com a sensação de que nunca mais ouviria aquele som.
Banhou-se demoradamente, colocou a roupa de missa, usada somente aos domingos quando se dirigia até a capela na vila e, para lá foi. Antes de iniciar a novena, passou pela casa do coronel e pediu sua ajuda. Queria por demais da conta ter de volta aquele chiadinho no final da tarde para lhe fazer companhia, repetia o som bem baixinho para não esquecê-lo: chiii, chiii, chiii.
Como nada nessa vida vem fácil, ela teria que retribuir os serviços de busca do coronel, não tinha posses, mas cozinhava muito bem, era conhecida pelos doces caseiros e pães que eram vendidos na vila. Com as vendas arrecadou pouco dinheiro, mas foi o suficiente para o início da tão esperada busca, o restante da dívida seria quitado pouco a pouco com as encomendas de pães e doces feitas pela filha gorda do coronel.
Os peões e capangas que trabalhavam para o coronel entraram de casa em casa, sempre ao entardecer, faziam as pessoas retirarem tudo dos armários, repetirem em voz alta o som e buscar nos arredores da casa qualquer coisa que fizesse aquele chiado: chiii, chiii, chiii. Mas nada era parecido com o som que inquietava aquela moça.
Ao chegar a uma das últimas casas de sua vizinhança, descobriu ali um desconhecido morador. Rapaz alto, moreno, rosto sisudo, mas de sorriso largo que lhe abriu a porta e colocou-se a disposição para ajudá-la na busca.
Enquanto os homens do coronel vasculhavam a residência, os dois sentaram-se na simples cozinha e prosearam longamente. Ela soube que ele havia passado muito tempo fora do estado, onde havia conhecido pessoas e coisas novas e voltara para continuar seu ofício em paz, dizia-se inventor. Ela interessou-se muito pela conversa, talvez mais pelo moço do que pela prosa, mas ali, atenta, despediu-se dos capangas e continuou a prosear.
A noite quase se aproximava e ele lhe mostrou diversas invenções, algumas que a ela não faziam o menor sentido, mas encantada com a eloqüência do rapaz, com seu sorriso e simpatia, ficou ali, escutando atenciosamente cada palavra, de vez em quando soltava um sorriso tímido e dizia: que engraçado, ou que interessante.
Quando já se aprontava para voltar para casa ele lhe pediu que aguardasse um pouco mais, ainda restava uma invenção, a melhor delas segundo ele. Entrou em um pequeno quarto e de lá saiu com uma panela de ferro redonda em uma das mãos e na outra uma tampa bem esquisita.
- Sabe o que é isso?
Ele deve estar de brincadeira, ela pensou.
- Claro que sei, é uma panela.
- Não, não é uma simples panela, ela é uma panela mágica.
- Mágica? Como mágica?
- Quanto tempo você demora para cozer algumas espigas de milho?
- Creio que quase duas horas.
- Pois é, com essa panela você conseguiria isso em poucos minutos.
Ela sorriu e disse:
- Acho que você começa a imaginar coisas.
- É verdade! Tenho utilizado essa panela há duas semanas para cozinhar milhos e mandiocas. Parei nos últimos dias, pois havia acabado a lenha, mas hoje posso mostrar-lhe.
Ela sentou-se calmamente e em seus pensamentos dizia: coitado, tão lindo e insano. Que desperdício!
Ele encheu a panela de água, colocou as espigas de milho dentro dela, lacrou com a tampa e sentou-se ao seu lado. Ficaram ali por uns dez minutos, observando a labareda que se fazia abaixo da panela.
Em poucos minutos a panela começou a soltar fumaça por uma das válvulas presas na tampa, e logo em seguida um som, que para ela era muito familiar: chiii,chiii,chiii.
Ela sorriu admirada, levantou-se da cadeira e começou a saltitar pela cozinha. Ele, sem entender nada, sorriu e questionou o que havia acontecido. Ela não lhe disse nada, o abraçou e com ele rodopiou por toda a casa, ao som daquele chiado que havia lhe tirado o sono e a inquietado por tantos dias.
Ela nunca mais se afastou dele, casaram-se e ela tornou-se uma quituteira famosa, ele continuou a inventar coisas, mas a panela nunca saiu daquela cozinha, era colocada para chiar todos os dias no mesmo horário, momento em que deixavam os afazeres de lado, e dançavam pela casa ao som do: chiii,chiii,chiii, daquela panela de pressão que por toda a vida cutucou seu coração.

2 comentários:

Taline Libanio disse...

Agradecimentos ao querido amigo Gabriel que contribui para a criação deste texto. Obrigada!!

Anônimo disse...

Amiga, vc está cd vez mais surpreendente, adorei, como tds que vc já escreveu, te adimiro muito, bjss...