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quinta-feira, 13 de março de 2014

Era uma casa muito...


Engraçada. Bonita. Exótica. Estranha. Interessante. Diferente. É assim a casa que não era, ainda é, pois lá permanece. Em um bairro tradicional da grande cidade, destoando dos padrões e chamando a atenção dos atentos para os pequenos detalhes.
A primeira vez que olhei para aquela casa achei que se tratava de alguma escola de artes, ou galeria, pois uma escultura no segundo andar chamou-me a atenção, bem como os mosaicos coloridos que desenhavam flores no muro, mas não mais do que a frase escrita em letra de mão e tinta vermelha no meio do muro branco: “A madeira apropriou-se de mim. Descobri então a magia de ser árvore”.
Anotei a frase com pressa enquanto o veículo corria pela rua e virei o pescoço para observá-la mais uma vez, enquanto o motorista dobrava a esquina. A magia de ser árvore. As árvores que se apresentavam floridas no caminho ganharam nova cor naquela tarde, a brisa que chacoalhava seus galhos me fazia sentir o cheiro da madeira e da poesia que o autor desconhecido, expressou naquele muro branco.
Quatro semanas depois passei novamente pela rua daquela casa e qual não foi minha surpresa ao notar que o muro branco, recebia nova frase, ainda escrita em vermelho, com um prefácio em azul que dizia: “Instante Reflexo: Quando transcendo sou apenas mais um, quando transgrido sou eu mesmo”.
Quando transgrido sou eu mesmo, quando transcendo sou mais um, apenas. Essa frase me fez lembrar o fato de que podemos acertar mil vezes e nunca receber um elogio, mas basta um erro para milhões de pedras serem atiradas contra nós. A violação é o encontro do que eu faço, com as consequências da minha ação. Ultrapassar limites, buscar ser superior coloca-me apenas no meio de uma multidão em competição constante. O que chama a atenção nesse instante não é alcançar a linha de chegada, a foto da capa vai para o atleta que queimou a largada.
Que tipo de transgressão aquele poeta teria cometido pra pintar o muro de branco, escolher nova tinta e pintar, em letra de mão, aquele sentimento que saia da alma e escapava pelo pincel, letra a letra?
Seis semanas passaram-se até que eu retornasse para aquela rua. Dessa vez passei bem cedo, com o sol ainda espreguiçando, na ânsia de encontrar o autor daquelas palavras, pintando o muro de branco, refazendo sua tela, ou quiçá colocando o ponto final na nova frase que se apresentava: Que eu minta, demais para mim”. Novamente escrita em letra de mão, em tinta vermelha, e sem autoria.
O artista não estava lá, poderia ter escrito na madrugada, enquanto olhava o céu estrelado, usando a lua cheia de farol. Poderia ter escrito uma palavra por dia, deixando os transeuntes curiosos, poderia apenas ter rabiscado e ido deitar-se poucos segundos antes da minha presença, o fato é que ele não estava ali.
Pensei em parar e bater palmas, chamar pelo proprietário, matar a curiosidade e desvendar a história daquela casa que passou a fazer parte de algumas das minhas tardes. Que eu minta. Demais para mim. Mentira corrói primeiro o mentiroso, dói, chega a ser demais mesmo, insuportável, até para mim.
Não parei. Não desci, nem tentei desvendar o mistério daquela casa. Os meses se passaram, mudei minha rotina e por consequência de trajeto e aquela casa permaneceu apenas na minha memória, em meio ao chacoalhar dos galhos das árvores, nas transgressões diárias, nas mentiras com gosto de verdades.
No início desse mês, quase seis meses depois da última frase, passei novamente pela rua daquela casa tão engraçada. Bonita. Exótica. Estranha. Interessante. Diferente. E a frase que ali estampava o muro branco, ainda em tinta vermelha e com a mesma letra de mão, me fez sorrir. Mais do que isso, me fez recuperar lembranças e eternizá-las nesse texto: “O delírio ainda não passou. Um livro ácido. Saudações para quem tem coragem. Arrisque-se”.
Arrisque-se. Coragem, mesmo que tarde. Ainda não foi dessa vez que me arrisquei e bati no portão para descobrir o que existe por trás daquelas letras, dentro daquela alma.

E mesmo com minha covardia ou medo do risco, desejo todos os dias que o autor daquela obra permaneça inspirado, cheio de vida, para transgredir o comum, transcender o real e tocar algumas almas mais atentas que por ali caminham, a cada duas ou três semanas, com uma nova frase, capaz de colorir até mesmo os dias mais cinzas...

4 comentários:

Taline Libanio disse...

Texto publicado no Jornal Democrata, de São José do Rio Pardo/SP, em meados de agosto 2013.
O último texto, depois de 5 anos de escrita.
Espero que apreciem...

Anônimo disse...

Agora emocionei, que saudade desta casa,que saudade de todos nós !!!

Isabel Silveira disse...

Volte a escrever mulher!!!!

Ernesto disse...

Tenho a leve impressão que essa moça não existe.