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domingo, 16 de setembro de 2012

Furta-cor




 "Meu poema sem dono. Que antes de ser, já não me era. Já não me tinha. E ao tentar ser, perde-se pouco a pouco. Na confusão de tanta linha". Clara Mazini.

Olhei para o céu exatamente às dezoito horas e vinte e dois minutos e acenei para o horizonte. O sol se despedia tímido, preguiçoso como o dia que se recusava a ir embora. Sua luz irradiou brilho e cor por todo o manto azul que envolve a terra.
Um alaranjado forte misturou-se ao azul celeste escondendo um lilás recatado que logo em seguida deu espaço a um violeta quase cinza, dando boas vindas à noite que se aproximava.
O sol se despediu em um espetáculo furta-cor. O emaranhado das cores me fez lembrar o passado, me fez também olhar de dentro para fora e ver o quanto anda faltando cor por aqui. Meus sentimentos andam espalhados, esquecidos, misturam-se aqui e ali.
Dias difíceis têm se apresentado. Notícias duras de engolir, medo, ansiedade e a insegurança, que andava sumida, voltou e me pede agora seu lugar cativo.  Eu reluto, mas a sensação é de que erro sempre que quero acertar e até mesmo quando acerto causo mal estar.
A brisa fresca que invade minha sala alivia o cansaço físico, mas a mente ainda borbulha. Queria tanto saber se estou no caminho certo. Cheguei a imaginar que seria bom se meus dias transcorressem sem surpresas, como os do astro rei. Começam e terminam sempre no mesmo ponto. Mas mudei de ideia tão logo me lembrei de todos os pores-do-sol que já assisti e de como cada um deixou seu significado.
Tiveram dias de céu azul claro, outros de nuvens cinza, aquele em que a lua já lhe fazia companhia e outro em que as nuvens brincavam de pique-esconde. Gosto quando as cores se combinam e de quando a sombra do sol deixa todo o resto insignificante. Cada dia é único, cada pôr-do-sol também, bobagem querer tornar os sentimentos exceções desta regra, apesar de acreditar que assim como as cores, eles até podem se misturar, mas não perdem suas propriedades.
A verdade é que perdi o rumo. Misturei cores demais e agora não sei mais qual me move. No meio de toda essa confusão, bem antes do pôr-do-sol, estava sentada no terminal de ônibus nesta mesma tarde quando vi um senhor se aproximar. Devia ter mais de setenta anos, era gordo, de cabelos brancos, vestia uma camisa azul que refletia seus olhos, uma bermuda verde musgo, sapatos marrons e meias escuras.
Parou na minha frente, olhou para os lados e resmungou algo. Levantei-me e ofereci meu lugar. Ele me olhou e disse enquanto sentava-se: Dói muito. Observei mais de perto seu rosto e vi lágrimas escorrerem de seus olhos. Vi suas mãos com os dedos atrofiados e imaginei que a dor tinha ali sua causa, perguntei-lhe se precisava de algo.
Ele me olhou, os olhos ainda cheios de lágrimas, colocou as mãos no rosto e chorou, compulsivamente. Não disse mais nenhuma palavra. Novamente me aproximei e perguntei se ele precisava de algo. Nenhuma palavra, apenas as lágrimas.
Fiquei ao seu lado até meu ônibus chegar, antes de sair, coloquei a mão em seu ombro e desejei que ficasse bem, novamente os olhos azuis me olharam e ele repetiu: Dói muito.
Dessa vez, limitei-me a dizer: Eu sei, em mim dói também. Ele então enxugou os olhos e disse: Obrigado.
Entrei no ônibus e da janela observei enquanto ele se levantava e caminhava devagar até a saída do terminal. Provavelmente nunca saberei a causa daquela dor. Mas de que adiantaria saber se não poderia amenizá-la? Compartilhar com ele a minha dor pareceu mais racional, por mais que minha causa fosse outra, por mais que minha dor pouco se parecesse com a dele.
A verdade é que para dor não existe medida, nem solução. Sua causa pouco importa. Em dias de dor intensa, seja ela física, emocional ou espiritual, o consolo pode ser a única saída. Tem dias em que é preciso viver a dor, curti-la até seu cessar, apontar-lhe um ponto final nesses casos não seria saudável. Seria como interromper um ciclo, engasgar-se com o soluço de choro engolido.
O pôr-do-sol colorido me trouxe de volta os olhos azuis daquele senhor, a mistura das cores no céu exaltaram o colorido de suas roupas e o sol se despedindo foi como um sopro, talvez o mesmo que fez com que ele se levantasse e seguisse seu caminho.
Eu também quero encontrar meu caminho. Preciso de mais cor, de misturas sem sentido, não quero mais combinações perfeitas, preciso de novos sonhos, preciso colocar a dor para fora e para isso desejo um sopro, forte, intenso e furta-cor...

Foto de: Murilo Mendes.

domingo, 2 de setembro de 2012

Vergonha alheia...


“Quanto mais gosto da humanidade em geral, menos aprecio as pessoas em particular, como indivíduos” (Fiodor Dostoievski).

Hoje me lembrei da única vez em que fui vítima de um assalto nessa vida. Estava morando em Franca/SP, no segundo ano da faculdade e descia com algumas amigas em uma rua pouco iluminada a caminho de uma festa em república.  Um rapaz se aproximou de nós, anunciou o assalto e pediu dinheiro.
Uma de minhas amigas tirou o que tinha na bolsa e entregou a ele, eu não tinha nada, só o ingresso da festa e um bilhete de ônibus que também foi parar na mão do sujeito. Tão logo pegou a merreca que conseguiu das estudantes, correu e nós ficamos ali, uma olhando para a outra sem saber direito o que tinha acontecido.
Não me lembro de ter sentido medo, aliás, fui a única que conseguiu abrir a boca e pedir que ele tivesse calma. Era um garoto ainda, não foi agressivo, tão pouco insistente. Apesar de ter sido um assalto anunciado, não me senti ameaçada, ou apreensiva, não mais do que hoje.
Estava a caminho do trabalho, às oito da manhã, em pé, no ônibus, que não estava lotado, mas sem lugar para sentar, quando senti uma pressão no meu quadril que me incomodou um bocado. Olhei para trás e vi um senhor, de estatura baixa, cabelos grisalhos, rosto enrugado pelas marcas do tempo, de costas para mim, encostando seu quadril no meu.
Tão logo o vi, com aquele perfil típico de vovô dos comercias, pensei: ele deve estar tentando se equilibrar, não deve ter sido de propósito. Dei um passo para o lado e sai daquela situação. Qual não foi minha surpresa quando o mesmo senhor vira-se, coloca-se atrás de mim e tenta me abraçar com as pernas, se é que me entende. Na mesma hora dei-lhe uma cotovelada e caminhei para perto da porta.
E como tudo que está ruim, pode ficar pior, qual não foi minha surpresa maior quando o vi se aproximar e novamente tentar se encostar em mim, assim que o ônibus parou. Nesta hora não tive dúvida, olhei para ele e disse em alto e bom som: O senhor não tem vergonha?
O cidadão olhou para trás, como se não fosse com ele, em busca de uma saída para algo que não tinha explicação, olhei novamente para ele a espera de uma reação, mas nada, nenhuma palavra para tentar desculpar o que já era evidente: sua tentativa ridícula de me assediar dentro do ônibus.
Senti vontade de dar-lhe um belo soco no nariz, ou um golpe de Muay thai para ver se ando aprendendo algo nas aulas, mas respeitei seus cabelos brancos e limitei-me a mostrar-lhe que não concordava com aquela situação, que ele me dava asco e que para dizer bem a verdade, não conseguia acreditar que um homem naquela idade estava se sujeitando a isso.
Devia ter chamado a guarda municipal, quem sabe até a polícia e feito um boletim de ocorrência contra aquele depravado, mas não o fiz, estava atrasada, precisava trabalhar e dei por resolvido o que foi observado por um ônibus inteiro e por ninguém comentado, ou defendido.
Ter passado por essa situação constrangedora foi horrível, mas pior ainda foi ver que ninguém, absolutamente ninguém, tomou qualquer atitude para me defender, ou evidenciar o erro do sujeito. Cheguei ao trabalho sentindo-me mal e apostando que coisas desse tipo só aconteciam comigo, mas qual não foi minha surpresa maior ainda quando ao expor o ocorrido para as colegas de trabalho escutei mais cinco histórias parecidas vivenciadas por cada uma delas.
Foi então que parei para pensar no quanto as pessoas me assustam. Creio que não exista nada pior para uma mulher do que sentir-se desrespeitada, invadida, ultrajada, agredida dessa maneira. A sensação de impotência é a pior do mundo, perca talvez para a de injustiça, e infelizmente tanto uma quanto a outra (que nem deveriam existir), andam presentes demais na rotina contemporânea.
Lembrei-me de todos os atendimentos que fiz de mulheres vítimas de violência, das manchetes e declarações machistas estampadas pela mídia do mundo todo recentemente, da luta incessante dos movimentos feministas em busca da garantia de direitos básicos para as mulheres, de todas as piadas ridículas que já ouvi sobre o assunto e da banalização sobre assédio ou violência que pipoca por ai e me arrependi de não ter tomado nenhuma atitude.
Voltei para casa envergonhada. Com vergonha alheia de todos que colaboram para que essas situações perdurem com comentários imbecis. Com vergonha da atitude tomada por aquele senhor que tinha idade para ser meu avô, mas que não merecia nem um pingo do meu respeito. Com vergonha das pessoas que não moveram nenhum dedo para me proteger daquela situação. Com vergonha de mim, por não ter ocupado meu tempo com algo que talvez não mudasse em nada meu dia, mas que poderia quem sabe mudar o enredo da história de outras mulheres.
A verdade é que vivemos deixando de lado tudo o que não consideramos essencial, ou que pode parecer irrelevante, muitas vezes pela falta de apoio ou consentimento de quem nos rodeia. Hoje quando contei para algumas pessoas sobre o que tinha acontecido elas riram, consideraram normal o ocorrido em um tom: você não foi a primeira e nem será a última.
Sim, infelizmente não sou manchete inédita nesse quesito, nem tão pouco ela sairá de moda, mas se continuarmos tendo esse tipo de postura, atitudes como as que vivenciei hoje continuarão a acontecer, e o pior, cairão no modo banalização da violência em breve. Espero não estar viva para presenciar o dia em que será considerado normal um homem agarrar uma mulher no ônibus, ou ainda uma atitude heroica observar algo do tipo e segurar-se calado, sem reação.
A verdade é que vivo enchendo a boca para dizer que ainda acredito na humanidade, que ainda acredito nas pessoas, mas tem dias em que sinto uma vergonha alheia tão grande que tenho até receio de me rotular como parte desse gênero, esse ai, que se diz humano...