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terça-feira, 13 de abril de 2010

A posse é de quem?!

"Nada será legitimamente teu, enquanto a outrem faltar o necessário" (Marat).


Confesso que tive a certeza de que nesta semana não poderia me apoderar deste espaço para continuar meu diálogo, quase mudo, com vocês.
Não por não querer, ou não ter assunto, mas por não ter a clareza de como abordar um assunto muitíssimo delicado que se apoderou da minha semana.
Para tanto precisei reintegrar alguns valores e certezas, para assim restabelecer a posse deste espaço e, sobretudo de um pouco do seu tempo.
Tentando reintegrar a ordem do meu e do seu raciocínio já adianto algumas explicações que deixarão bem claras todas as posses e reintegrações aqui descritas.
No início desta semana fui convocada com outras vinte e uma colegas para atuar em uma ação de reintegração de posse. No caso em questão seria uma operação para restabelecer ao proprietário a posse de cinco blocos de prédios residenciais, que haviam sido apossados por quase cem famílias há aproximadamente seis meses.
Segundo o dicionário, o conceito reintegrar significa “restabelecer (alguém) na posse de um bem de que fora despojado”, e o termo posse, “o estado de quem frui uma coisa ou a tem em seu poder”.
Ressalta-se que ainda de acordo com o dicionário o termo apossar prevê entre seus significados: apoderar-se, invadir, dominar e o que mais me chamou a atenção: conquistar.
Em suma poder-se-ia dizer que estava atuando em uma ação que objetivava reintegrar a alguém a posse de um bem, que havia previamente sido invadido (ou conquistado) por outras pessoas.
O fato é que não me senti nenhum pouco confortável naquela situação, que se mostrou em alguns momentos um tanto quanto alheia aos objetivos da minha profissão, mas ordem judicial é ordem judicial e lá estava eu atendendo a esta convocação.
Não existe, de minha parte a pretensão de julgar as certezas e verdades das partes envolvidas neste processo, nem pretendo que pensem que sou a favor de invasões de propriedades e imóveis, ou que concordo com qualquer tipo de manifestação que venha ferir o direito e a liberdade dos outros, mas neste caso fiquei pensando que na verdade estava acontecendo uma reintegração de posse para estabelecer a alguém um bem, que havia sido apoderado por “ninguém(s)”.
A operação para cumprimento do mandato judicial iniciou-se pouco antes das cinco da manhã e estendeu-se até as nove da noite. Amparadas por quase duzentos policiais, cavalaria, cães farejadores, além da guarda - municipal, corpo de bombeiros e ambulâncias, nos dirigimos até o local em um comboio que parecia a caminho de uma guerra.
Não encontramos resistência. Apenas desespero, medo, revolta e muita indignação, inclusive de minha parte, ao ver aquelas famílias se deslocarem em baixo de chuva, ajeitando seus bens de qualquer jeito com medo de não salvá-los e lotando caminhões que iam e vinham no meio de um mar de lama.
Sei que muitas famílias, iludidas pela oportunidade de obter um imóvel, saíram de suas casas, as deixando sob cuidados de parentes ou inquilinos para ali se instalar, não sendo, portanto vítimas desta tomada de posse, contudo muitas das que ali estavam deixaram seu desespero transparecer nas lágrimas, nos abraços apertados e na dúvida: E agora? Para onde vamos?
Toda esta situação me fez pensar que a posse é mesmo muito relativa. Ao nos apossar de algo, podemos invadi-lo ou conquistá-lo, quando conseguimos a posse pela invasão, esta pode ser tirada de nós a qualquer momento. É como se pudéssemos usufruir de um espaço, de um sentimento ou de alguém com os dias contados. No entanto, quando a posse é adquirida pela conquista, não há processo de reintegração ou santo que lhe faça derrotado.
É como no amor. Invadir os sentimentos de alguém é arriscado, nunca se sabe o que esperar, pode ser que seja bem recebido, mas pode ser que seja expulso com artilharia pesada, pois impôs algo que não era agradável para a outra parte. Já a conquista... Ah a conquista! Que delícia conquistar o amor e a confiança de alguém, um processo árduo, mas que gera resultados e posses definitivas.
Penso que aquelas famílias acreditam que nunca tiveram a posse daqueles bens, penso ainda que temam nunca ter se apoderado de suas próprias vidas. Famílias com histórias de vida bem próximas de muitos de nós, pessoas que assim como eu, sonham com a casa própria, com um futuro melhor e que foram invadidos por promessas e ilusões deixadas na lama que se fez em frente aos prédios.
Creio que lhes faltou entender o conceito de conquista, especialmente aquele utilizado por Saint-Exupéry, em “O Pequeno Príncipe”, onde afirma: “Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas”. Talvez se dele se apropriassem poderiam ter saído dali carregando consigo ao menos a certeza de que todo aquele espaço, de um jeito ou de outro, já lhes pertencia. E que todas as histórias, aflições e xícaras de açúcar compartilhadas continuarão eternas na lembrança de cada família que dali saiu, marcando o barro com suas pegadas e meu coração com suas lágrimas e seu exemplo de solidariedade.
Cheguei em casa exausta, com as pernas formigando depois de tantas horas em pé, e com a certeza de que a posse reintegrada a alguém é sinônimo de bem despojado de ninguém(s). Aprendi ainda que na sociedade do “ter”, a posse de um bem pode significar muito além do que alguém.
Afinal de quem é a posse?! Daquele que a sucumbe ou de quem dela se apodera? Os abraços e lágrimas que vi naquela despedida, a troca de telefones e a devolução de panelas e roupas de cama, me fizeram ter a certeza de que a posse, por mais que se diga o contrário, continua sendo de ninguém(s), os únicos que cativaram algo real nesta operação: sentimentos e vínculos que não serão desfeitos com o tempo, nem mesmo com a implosão daqueles prédios.
Ilustração de: Gabriel Vicente.

3 comentários:

Luis Fernando Moraes disse...

Olá Taline, tudo bem?
Mais uma vez, adorei o seu texto! Muito bom mesmo! E ah, espero que a nossa amizade tenha sido pelo sentimento da "conquista", para que possamos, mesmo com a correria da vida, nunca perdemos o contato. Saudades! Até mais!

Hermes disse...

Gostei bastante do texto. Este me trouxe algumas ideias a cabeça que seguem abaixo:

A defesa da propriedade é, desde a revolução francesa, do advento do direito moderno e do surgimento dos interesses burgueses, uma linha perene nas disputas dos grupos que estão dentro dos limites da fricção social. Mas, assim como a posse da propriedade existe outro tipo de posse, desvelado (e não criado) no correr dos tempos, e que hoje tem um papel preponderante na sociedade. A posse das palavras. Não a posse por ela mesma, mas o direito de dizê-las. Não estou aqui fazendo uma apologia à liberdade de imprensa ou à restrição da mesma, mas ao ato de publicizar e compartilhar as memórias. Algumas pessoas escrevem livros, outras contam sobre a sua vida ao netos, ou falam à imprensa, ao vizinho, ao cachorro, para que a sua memória tenha um lugar, um espaço. De fato, muitas vezes, esse espaço é concedido, e na maior parte das vezes é o espaço da nossa memória. Nos apropriamos do sentimento do outro e o fixamos em nosso imaginário. Cenas que momentâneas iluminam nossas sinapses e transformam-se dentro do nosso sistema de representações, organizado voluntaria ou involuntariamente.
Como vê, não falou da posse material, mas busco o evento espetacular (que não é necessariamente um evento fantástico, ele pode ser singelo e marcante ao mesmo tempo). O acontecimento do outro nos marca como se sua imagem, sua paisagem, seu momento, trouxesse o outro para nós em sua dimensão completa. Mas nunca estabeleceremos posse sobre esse sistema de representações do alter, pois uma vez que o conhecemos (se isso for possível), ele já faz parte de nós, e não do outro.

Anônimo disse...

Ordem judicial é prá ser cumprida...princialmente por quem é convocado, não tem conversa, não tem mas, apenas cumpra-se...doeu, mas como foi tão bem colocado por você, somos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos e entre lágrimas, abraços e silêncio solidário, nós sabemmos muito bem o que cativamos...bjs.