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sábado, 5 de dezembro de 2009

Vida de inseto

Era uma noite chuvosa, fresca e barulhenta, que nos brindou com sua escuridão. Era uma dessas noites de “apagão”, onde faltou a luz e sentimos faltar o chão sob os pés. Momentos em que percebemos o quanto somos dependentes da tecnologia e dos confortos contemporâneos. Noite em que observar alguns insetos que rodeavam incessantemente uma vela, tornou-se uma grande diversão.
Alguns insetos grandes, outros pequenos, alguns com asas, outros com pequenas patas, iam e vinham em torno do pires que sustentava a vela, alguns mais audaciosos arriscavam um vôo ao seu redor e sumiam, alguns para sempre.
Um pequeno besouro, em especial, chamou minha atenção. Foi um dos primeiros a rodear a chama da vela e não contente com sua proeza cortou a chama raspando no pavio, que fez o fogo esmorecer rapidamente e me permitiu vê-lo sair do outro lado da chama, com uma das asas queimadas.
Caiu bem ali, de costas, no vidro da mesa de centro e ficou a mexer as patinhas numa súbita vontade de recobrar o equilíbrio. Não me atrevi a auxiliá-lo, creio que ele precisava aprender aquela lição sozinho. Quanto a mim, ficaria a observá-lo e a incentivá-lo em pensamento enquanto olhava outro inseto que se aproximava da vela.
Este, menor que o besouro, parecia uma formiga com asas, popularmente conhecido por “aleluia”, o bichinho subiu com cuidado até o pires e começou a andar em círculos.
Ia e vinha o tempo todo, sem dar descanso às patas cansadas, como se fizesse uma reverência à vela colocada no centro daquele círculo imaginário.
Fiquei pensando quando ele iria subir pela vela, ou quando criaria coragem para voar próximo às chamas como os demais insetos que ali estavam, mas ele não o fez. Ficou ali na mesma rota, até que a chama terminasse, hipnotizado pela luz, extasiado com todo aquele calor que o prendia como um imã.
Antes da chama findar-se voltei a olhar o pequeno besouro, que com muito esforço havia novamente se colocando de pé. Uma das asas estava comprometida, mas isso não o impediu de mais uma vez alçar vôo pelo pires. Ia e vinha, desta vez mais tímido, mas cada vez mais alto.
Pensei que nenhum animal seria suficientemente ignorante para novamente jogar-se nas chamas e ingenuamente me surpreendi quando o vi usar suas últimas forças para jogar-se novamente na chama e cair, desta vez sem vida.
Foi então que comecei a pensar na nossa semelhança com os insetos e tentei encontrar alguma característica que nos diferenciasse deles. Depois de muito pensar, encontrei apenas uma: a consciência.
Da mesma forma que aquele besouro, trilhamos objetivos, superamos obstáculos e muitas vezes somos por eles derrubados. Criamos novas estratégias, definimos novamente o objetivo, nos machucamos, recebemos todos os sinais de que aquele não é o melhor caminho, mas tão logo criamos novas forças, recuperamos o equilíbrio, nos jogamos na chama e muitas vezes não vemos mais saída.
A única diferença destas duas histórias está na consciência dos atos. O besouro age por instinto, não consegue desvencilhar-se da luz, nós muitas vezes nos atiramos na chama conscientes e ainda assim nos lamentamos com o fatídico resultado e não aceitamos as renúncias de nossas escolhas.
Assim também podemos nos comparar com a “aleluia”, que ficou por horas almejando seu objetivo e não se arriscou, deixou engolir-se pela rotina, e saiu cabisbaixa para longe da vela que já perdia seu significado com o apagar da chama. Quanto a nós, quantas vezes não trilhamos objetivos, fazemos planos e nos sufocamos pela rotina, que nos acomoda e nos impede de alcançá-los?
A cada dia tenho mais certeza de que temos muito a aprender com a natureza, com seu instinto e seus reflexos e é por isso que não me canso de observá-la.
Seja dia ou noite, com luz artificial ou solar, com lâmpada ou velas, meu olhar sempre estará em busca das pequenas coisas que nos movem. Das pequenas coisas que constituem a essência humana.
Talvez se adotássemos a vida de inseto poderíamos ganhar muito, principalmente se formos capazes de usar nossa consciência humanamente. Consciência esta, que atribui ao homem a capacidade de agir racionalmente e fazer suas escolhas de maneira justa.
Creio que nos falta um pouco mais de instinto e nos sobra crueldade em alguns momentos, em outros nos falta coragem e nos sobra acomodação, sem falar nas vezes que nos sentimos com as pernas para o ar e sem forças para recomeçar. Para recobrar este equilíbrio, e nos ensinar novas formas de trilhar os mesmos caminhos, creio que os insetos, na imensidão de suas monótonas vidas ainda têm muito a nos ensinar....
Ilustração de: Gabriel Vicente.

3 comentários:

Marly Meyre disse...

Interessante sua cronica.
Na verdade tudo que existe tem uma razão de ser.
E deveriamos realmente observar masi pra aprendermos.
bjus no seu coração

Hermes disse...

Antigamente morria-se por um ideal. Ontem morria-se pela justiça. Hoje morre-se, quiçá, pela família.

Acredito que inconscientemente um homem sabe quanto vale sua vida. Quando dizemos "matar e morrer por nada" estamos aferindo um certo valor à importância de determinado sujeito. Uma aleluia vive por tão pouco tempo que não consegue tomar consciência de sua existência, mesmo se a consciência fosse algo que ela tivesse. O homem tem décadas para saber-se sujeito, e milhares de anos escritos em papéis que só fazem sentido quando ele compreende a perenidade da ação humana.

Ao fim das contas, todos temos que atravessar o fogo e cada qual o conhece bem. Jogamo-nos nele todos os dias e matamo-nos a cada descoberta, a cada respirar, a cada suspiro de amor, a cada alegria até que o corpo se gaste na chama e permaneça vivo em outro lugar.

Petrus disse...

Oi, eu estava passando quando esse texto chamou minha atenção. Gostei muito dele, sabe. Realmente sublime. Os insetos são criaturas magníficas e, assim como todos os filhos da natureza, têm muito a nos ensinar sim.
Você escreve muito bem e possui uma linha de pensamento muito clara. Parabéns.