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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Balas de Coco

Tento escrever sobre alguma coisa boa, bonita ou engraçada que tenha observado na última semana, mas nada me vem à mente. Puxo na memória as figuras com que esbarrei nos pontos de ônibus, nas calçadas esburacadas e no meio da praça, mas nenhuma delas me parece digna de citação.
Algumas imagens, algumas pessoas, alguns relatos invadiram minha mente nos últimos dias com suas aflições reais, com seu mal estar e sua ira e é a eles que devo me referir.
Não só a eles, mas a todos nós, que construímos estas tragédias, que formamos esta humanidade tão desumana. Presenciei catástrofes naturais bem distantes daqui, longe do meu nariz, dos meus olhos e do meu entendimento, e tão logo os escombros começaram a se reerguer, desvelando vítimas de um terremoto no Haiti, a chuva decidiu castigar aqui, bem perto de mim, tão próximo do meu nariz que desta vez pude sentir o odor da destruição, molhar os pés na lama e estender minhas mãos.
Famílias que perderam tudo, móveis, roupas e parte da dignidade. Famílias que se perderam. Famílias que tentam buscar forças para se reerguer, recomeçar, sem saber ao certo onde fica o ponto de partida. Pessoas comuns que perderam sua casa, seus bens mais preciosos, parte de seu coração e quiçá de sua alma.
Não tenho conseguido me desligar destes incidentes naturais, nem tão pouco consigo entendê-los como uma fatalidade. Ao homem a culpa, ao homem o castigo.
A natureza revolta-se, aflita com tanta falta de percepção. Enquanto nas escolas trabalha-se a educação ambiental, nos rios são despejadas toneladas de lixo. Enquanto se realiza um plantio de árvores na pista de caminhada e ensina-se o valor do ar puro para as crianças, grandes áreas são desmatadas pondo fim ao sonho de um mundo ecologicamente correto no futuro.
Creio que de imediato, precisamos pensar e sonhar apenas com a manutenção do mundo. Começo a entender o impacto que as previsões de fim do mundo, que antes pareciam chacota, hoje resultam nas pessoas. O fim do mundo assusta mais que o bicho papão, mais que a inflação.
Em uma destas tardes chuvosas percebi nitidamente esta aflição em um senhor que entrou no meu local de trabalho. Não queria orientação, não solicitou recurso nenhum, apenas entrou na sala, com uma cesta nas mãos e antes de oferecer o produto escondido por um pano de prato, me perguntou:
- É verdade que o mundo vai acabar?
Fiquei pensando por alguns instantes antes de responder. Se fosse há alguns anos atrás provavelmente teria achado graça da pergunta e dito com certeza que não, mas desta vez hesitei:
- Com essa chuva parece que o mundo está acabando mesmo, não é?
- Ouvi dizer que o mundo vai acabar em 2012, está perto, não é?
- Essa é a história de um filme, mas não sei se é real.
- Mas a senhora acha que o mundo vai mesmo acabar?
- Sinceramente eu espero que não.
Ele saiu dali com duas balas de coco a menos na sua cesta, com dois reais a mais no bolso e com uma angustia agora compartilhada por mim, ao imaginar o fim do mundo.
Quem sou eu para dizer se sim ou se não, mas que temos buscado isso diariamente me parece que está nítido. Parece que aqueles que têm mais de cinquenta anos não se preocupam com o que será do futuro, pois já não pretendem estar aqui. Aqueles que acabaram de nascer já se acostumaram com a poluição e nem sabem mais a cor real da natureza, e para aqueles que ainda pretendem um dia aqui estar, eu desejo boa sorte e balas de coco.
Para finalizar, deixo um texto que me faz refletir muito sobre o que esperamos do mundo e principalmente de nós mesmos, ao proliferar a existência de nossos insetos interiores e destruir o que temos de mais valoroso, a vida:

“Notas de um observador:

Existem milhões de insetos almáticos.
Alguns rastejam, outros poucos correm.
A maioria prefere não se mexer.
Grandes e pequenos.
Redondos e triangulares,
de qualquer forma são todos quadrados.
Ovários, oriundos de variadas raízes radicais.
Ramificações da célula rainha.
Desprovidos de asas,
não voam nem nadam.
Possuem vida, mas não sabem.
Duvidam do corpo,
queimam seus filmes e suas floras.
Para eles, tudo é capaz de ser impossível.
Alimentam-se de nós, nossa paz e ciência.
Regurgitam assuntos e sintomas.
Avoam e bebericam sobre as fezes.
Descansam sobre a carniça,
repousam-se no lodo,
lactobacilos vomitados sonhando espermatozóides que não são.
Assim são os insetos interiores.
A futilidade encarrega se de 'mais tralos'.
São inóspitos, nocivos, poluentes.
Abusam da própria miséria intelectual,
das mazelas vizinhas, do câncer e da raiva alheia.
O veneno se refugia no espelho do armário.
Antes do sono, o beijo de boa noite.
Antes da insônia, a benção.
Arriscam a partilha do tecido que nunca se dissipa.
A família.
São soníferos, chagas sem curas.
Não reproduzem, são inférteis, infiéis, "infértebrados".
Arrancam as cabeças de suas fêmeas,
Cortam os troncos,
Urinam nos rios e nas somas dos desagravos, greves e desapegos.
Esquecem-se de si.
Pontuam-se
A cria que se crie, a dona que se dane.
Os insetos interiores proliferam-se assim:
Na morte e na merda.
Seus sintomas?
Um calor gélido e ansiado na boca do estômago.
Uma sensação de: o que é mesmo que se passa?
certo estado de humilhação conformada o que parece bem vindo e quisto.
É mais fácil aturar a tristeza generalizada
Que romper com as correntes de preguiça e mal dizer.
Silenciam-se no holocausto da subserviência
O organismo não se anima mais.
E assim, animais ou menos assim,
Descompromissados com o próprio rumo.
Desprovidos de caráter e coragem,
Desatentos ao próprio tesouro...caem.
Desacordam todos os dias, não mensuram suas perdas e imposturas.
Não almejam, não alma, já não mais amor.
Assim são os insetos interiores”.

(Insetos Interiores – O Teatro Mágico)
Ilustração de: Gabriel Vicente

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A caneca

Terça-feira. A primeira do verão deste resto de ano. Dia quente. Convidativo para uma reunião em bar com os amigos, ao lado de uma cerveja gelada e de uma brisa fresca. Dia estranho que me fez fugir da rotina de manhã até o início da noite e transformou a rotina restante em risos e versos. Manhã preguiçosa que me convidou a ficar na cama por mais cinco minutos e que me obrigou a correr até o ponto de ônibus por outros cinco. Minutos lentos que atravessaram a janela do ônibus e me apresentaram o ir e o vir dos carros e das pessoas. Dia repleto de papéis, mas isento de preocupações profissionais. Dia de preocupação com a saúde e de constrangimentos. Terça-feira atípica. Tarde de almoço de confraternização no trabalho. De samba de roda e de cerveja na mesa do escritório. Tarde de luz e de risos. Dia de perguntas inconvenientes e de apatia. Confesso que não estava disposta a encarar com muito prazer este dia, até porque fisicamente meu corpo ainda pedia pausa e gritava por repouso. Não sei se por conta das últimas notícias ou do calor excessivo, o fato é que não tive ânimo para o samba, nem para as fofocas espontâneas. Limitei-me a observar e tudo não teria passado de uma terça-feira quente se não fosse pela cumplicidade que me foi apresentada em um convite: - Já que você não pode ir para o bar, combinamos de ir tomar um café. O que acha?! - Café? - É. Café. Passo para te buscar umas cinco horas. Mal tive tempo de responder o sim ou o não, principalmente por pensar em alguns detalhes deste convite, do tipo: Café, em uma tarde quente desta? Café, na primeira terça-feira de verão deste resto de ano? Café, simples e puro café? Puro, com leite, frio, quente, com conhaque ou chantily, de um jeito ou de outro, assim ou assado, posso afirmar que foi o mais agradável café de todos os meus dias. Café forte, mas doce. Café preto e branco. Café para despertar e sorrir. Foi assim, com um simples café que se iniciou mais um delicioso “Dia das meninas”. Foram quase quatro horas de conversas intensas. Muita comilança e bobagens que iam e vinham com a garçonete. Mimos de Natal com direito a cartão individual. Pedidos de atendimento feitos por engano por simples reflexo ou curiosidade. Soda de maça verde. Dúvidas entre mais de vinte itens que iam de cima a baixo no cardápio. Fofocas amargas ou auspiciosas, tudo isso acompanhado de um simples café. Poderia falar de muitos assuntos tratados naquele final de tarde, mas nenhum teria tanto significado quanto o que mais nos rendeu risadas e fechou o encontro e o ano com chave de ouro (ou seria de alumínio?). Final da tarde, início da noite, céu claro, com poucas nuvens. Hora de pagar a conta e voltar para casa. Fila do caixa, cálculos e olhares curiosos em volta das coloridas paredes do Café. - Nossa! Que caneca linda! Olhei para meu lado direito e vi uma de minhas amigas segurando uma caneca de alumínio azul, destas que se usa para levar café para o trabalho. No mesmo instante todas concordaram com o elogio e atentas olhamos para a garçonete que disse: - Acho que essa é a última, aproveita para levar, é só R$9,90. - Vou comprar para presentear você! – disse uma outra amiga virando-se para a última integrante do quarteto, que por coincidência faria aniversário naquela semana. Conversa vai, conversa vem. A caneca já estava de posse da futura aniversariante quando uma outra atendente, com mais tempo de casa interrompe a conversa e diz: - Ela disse o preço errado para vocês. Essa caneca custa R$25,00. - O quê?! – disse a compradora da caneca ao mesmo tempo em que tirava a caneca das mãos da aniversariante e a devolvia no balcão. - É que ela é nova aqui e não sabe o preço direito. - Mas e agora? Se eu não levar, minha amiga vai achar que não merece um presente de R$25,00, mas está muito caro! - Mas não posso fazer nada! - Moça, ela já nasceu no Natal, ganha só um presente por ano, se ela achar que ela não merece essa caneca que custa R$25,00, como você acha que ela vai se sentir? - Então, compra a caneca para ela e prova que ela merece, ué! E assim, deu-se o diálogo entre a compradora da caneca e a atendente, enquanto isso, eu, a futura aniversariante e nossa outra amiga nos desmanchávamos de tanto rir no meio do saguão. Resumindo, a aniversariante saiu de lá com a caneca. A compradora da caneca saiu de lá com seu presente eternizado em uma fotografia digna de porta-retratos e nós ganhamos uma tarde inesquecível de risadas e disse que me disse. É por estas e outras que admiro incessantemente as pequenas coisas da vida. É por estas e outras que valorizo tanto minhas amizades. Um simples café tornou um dos dias mais indispostos do ano, uma tarde repleta de gargalhadas e de boas recordações. Recordações que só tornaram-se tão boas e inesquecíveis por estarem, eternizadas nos sorrisos e abraços de grandes amigas. Um brinde à caneca térmica, à amizade e ao cafezinho, é claro!



Ilustração de: Gabriel Vicente.